domingo, 19 de fevereiro de 2017

O nomadismo, a náusea e a flor


Aquele dia começou com uma temperatura tão alta que resultava numa dor de cabeça insuportável.
Havia sonhado à noite com um vaso que continha duas flores vermelhas e despertei ouvindo uma voz dizendo que elas se abririam e floresceriam.
Fiquei intrigada com o sonho e meti na cabeça que precisava achar aquelas flores e levá-las para casa.
Mas a dor de cabeça me infernizava e impedia de ter ânimo.
Resolvi então mostrar ao meu corpo que era eu a sua comandante, e que meu comando era para que ele ficasse bem. Saí para dar uma volta, procurar a flor e melhorar a dor.
Fui à feira debaixo do sol escaldante... procurei, procurei, , mas nada de achar a flor que eu queria.  Queriam me convencer a levar outra... mas, eu precisava de duas, exatamente iguais às do sonho.  Porque era preciso ser flor, e era preciso florescer, disse que voltaria na semana seguinte e que as flores estariam lá.
Segui para o mercado, porque precisava comprar areia para os gat@s, que são seres que fazem questão de serem não só independentes, mas também muito limpos.  Quem dera se a alma da gente pudesse ser tão limpa quanto os pelos d@s gat@s...
Ao passar num dos corredores ouvi um sussurro que pedia para que eu comprasse um pacote de arroz. Era uma mulher com uma menina linda no colo. O olhar da mãe, no rosto caboclo, era muito triste.
Comprei o que ela pediu, e outros itens. Certamente, isso não mudaria a vida dela. Sempre detestei o discurso hipócrita do “cada um deve fazer a sua parte”. Não! Num sistema econômico desigual, haveria sempre muitas mulheres pedindo ajuda nos mercados para que outras pessoas pudessem viver em palacetes.
Mas... a fome não liga pra teorias políticas.
Não é impossível ser feliz sozinho, já que sozinh@s não estamos nunca. O impossível é ser feliz famint@.
Fomos para a fila. A mulher quase não elevava os olhos e falava muito baixo. Pensei que por ser o mais nobre de todos, somente o amor de uma mãe é capaz de suportar certas dores.
A mulher agradeceu. Eu toquei de leve no seu braço e disse que a vida estava difícil, mas que ela tivesse fé, porque tudo iria melhorar e que nós, mulheres, éramos muito fortes.
Perguntei se ela era cigana, porque estava com uma saia colorida. Ela disse que não.  Quase disse pra ela que adorava o povo cigano e que também gostava de roupas coloridas. Calei-me, por perceber que o silêncio não tem tantas cores, mas às vezes é uma roupa com caimento melhor.
Depois reparei no rosto da menininha. Os olhos dela eram muito profundos. Parecidos com os da menina afegã que estampou a capa da Nathional Geographic nos idos do século passado. Disse sobre o quanto ela era linda e ela deu um sorriso bonito como só na infância somos capazes de ter.
Aqueles olhos verdes enormes já tinham visto, talvez, muito mais coisas do que os meus.
E fui embora.
Enquanto caminhava, fiz uma prece pelas duas, senti uma tristeza profunda e a impotência do mundo. Desejei que elas ficassem bem.
Se tudo na vida é aprendizado, desejei que o aprendizado de dor delas fosse breve.
Pensei naquela mulher, que estava tão triste a ponto de não se atrever a levantar a cabeça e a voz.
Lembrei-me de que quando meu pai havia partido deste plano, há muitos anos atrás, eu abri o armário num dia e só havia arroz pra cozinhar. Minha mãe ainda não havia recebido seu salário e a pensão por morte do meu pai demoraria a sair.
Cozinhei o arroz e ofereci para meu irmão caçula, que questionou o fato de só termos aquilo para comer.
Eu disse que só tínhamos aquilo pra comer, mas que pra ele ficar feliz, porque tinha muitas crianças que não tinham nada pra comer, nem mesmo arroz.
Comemos em silêncio.
Na tarde daquele dia, chorei tão baixo quanto a voz da mulher de hoje no supermercado.
À noite, recebemos alimentos de um moço a quem sempre detestei, porque ele sempre demonstrara sentimentos que abomino. Ele era racista, machista, homofóbico... era a concretização de muitas coisas que me causavam ojeriza.
Ao invés de me sentir grata pelas doações, eu me senti humilhada e desejei nunca mais precisar de ajuda. Especialmente dele. E nunca mais precisei.
Pensei que devia ter contado essa história para a mulher do mercado. Mas simplesmente não havia me lembrado dela na hora. A memória é um bicho ardiloso.
Entendi então, o olhar daquela mulher. Ninguém se sente confortável por depender de outras pessoas para suprir necessidades básicas, como se alimentar. Meu olhar, anos atrás, deve ter sido exatamente o mesmo.  E eu a enxerguei em mim, e ao meu irmão na filha bonita dela.
Entendi que aquela experiência me fez mais forte. E pessoas fortes às vezes demoram tempo pra enxergar o tamanho de sua força.
Hoje, ao sair para comprar flores e areia, entendi que se melhorar é aprender o valor da gratidão.
Resolvi que, assim que puder, e em breve, procurarei aquele homem e o agradecerei. Porque, um dia minha família precisou de alimento e ele teve um gesto de generosidade.
Tod@s estamos caminhando, cada qual com a sua velocidade, e no seu processo de humanização imperfeita. Uma mulher forte me disse noutro dia que a gente deveria nascer com 80 anos.
Cada pessoa, dentro de todas as suas limitações, possui certamente ao menos um lampejo de luz.
Ao diminuir o tamanho do ego, a gente passa a conseguir enxergar os gestos que, ao menos uma vez na vida tornam as pessoas belas.
Minha dor de cabeça desapareceu, sem deixar rastros.
Tenhamos gratidão, para que nossas flores brotem, se abram e exalem  perfumes suaves pelos caminhos. O mundo já anda espinhento demais.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Sobre os livros que não escrevi e os amores que não vivi


Li uma vez não sei onde que é preciso na vida realizar algumas coisas essenciais, como escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore.
Sempre pensei que a gente não deveria criar tantos roteiros. Como medir a importância das experiências que cada pessoa vive? Dos amores que lhe palpitam no peito? Das pequenas belezas do cotidiano? Ao fim, ao cabo, tudo compõe o emaranhado por vezes organizado, por vezes caótico que nos constrói.
 Como medir o peso do que realizamos? A importância das coisas que criamos, das pessoas às quais amamos?
Assim como as pequenas coisas do cotidiano trazem consigo uma pequena centelha revolucionária, sempre achei que os amores não vividos plenamente, não concretizados, “mancos”, imperfeitos, tem lá sua beleza. Ainda que seja somente para quem amou. Não se deve roubar a sorte da profundidade do coração de ninguém.
Entre um gole e outro de vinho, uma menina me contou uma história sobre um amor desse tipo. Das trocas é que é feita a vida. Sua história de amor teve início uma noite quente que pedia uma cerveja gelada.
Naquele final de noite seus olhos se encontraram. A menina os olhou com a curiosidade que se olha para um livro do qual já se viu a capa, mas que nunca fora aberto.
Os olhos do menino eram enigmáticos. Ela enxergou neles uma profundidade que não existia, mas que ela imaginou existir.
Aquela menina enxergava com a alma dela. E dava à capa daquele livro as cores que compunham a capa do seu livro.
Ela conversou com o menino por horas e sentiu a alegria do encontro entre aqueles  que se conhecem de uma vida inteira. Não conseguia enxergar nada mais ao redor para além daqueles olhos.
Ele disse que ela era incrível. Ela achou que o menino era generoso.
Cada vez mais via o menino como um livro a ser lido. Daqueles que a gente não consegue deixar de ler até o final e depois quer ler de novo. O coração da menina desejou ler aquele livro todos os dias. Desejou decifrar todas as suas frases, vírgulas e reticências. Desejou compor vários capítulos dele. Desejou que ele nunca tivesse um ponto final.
Por dias, permaneceram se lendo e descobriram que já estavam em vários trechos um do outro há muito tempo, mas que nunca tinham se encontrado como um texto coeso. A menina enxergou uma coesão que também não existia.
Ele disse se lembrar dela anos atrás, descrevendo a roupa que ela usara e o que ele sentira ao vê-la. Ela se encantou por esta estrofe.
Noutra noite, o menino disse que o encontro daqueles textos não daria certo, porque se tratava de um encontro de “almas gêmeas”. A menina sentiu vontade de beijá-lo e de escrever muitas poesias sobre os sabores daquele beijo.
Ela trocou com ele as suas mais doces memórias de infância. Profundas e bonitas como as sementes que plantava na terra e via crescer.
Acreditou que seus valores da terra se pareciam com os do menino e esta parte da história a encantava tal qual colher manga madura no pé e se lambuzar com ela sentada na grama.
Aquele amor que se ia acrescentando no livro que já andava bastante rabiscado também possuía trilha sonora. Ela colara vários lembretes às páginas do livro e muitos eram sobre as canções. Elas falavam de amores bonitos, sentidos por todos os poros. O coração da menina ao ouví-las quase doía. Ela dizia ao menino que seu gosto musical fazia mal a corações desavisados.
A menina julgava ler os olhos que encarnavam aquele texto e cria se enxergar  dentro deles. Mal sabia ela que enxergava a si mesma.
Ao passar de muitas noites, embaladas como contos de Sherazade, depois de ler muitos capítulos, os olhos da menina e do menino se olharam. E se desejaram. E sorriram junto com os lábios. E do encontro das palavras passaram ao encontro dos corpos. O corpo da menina vibrava e ela sentia que isso não caberia em nenhum texto.  Ela desejou que ele estivesse dentro dela, mas que enxergasse a alma que habitava aquele corpo.
A menina leu, releu, analisou, rabiscou, apagou, reescreveu aquele livro. Aquela leitura já não lhe inspirava leveza. Ela começou a perceber que as histórias do livro nunca existiram para além da sua imaginação e do seu desejo profundo de amor. Da mesma forma, o menino só existira no interior deste mesmo desejo.
 A menina percebeu que era ela a autora de toda a história que dava vida ao livro e de todos os seus acréscimos, todavias, entretantos, vírgulas e reticências. Ela o leu profundamente, mas a análise havia sido sempre solitária.
Enxergou que todas as cores existentes no livro só haviam sido dadas porque existiam dentro dela. Percebeu finalmente, que a beleza era ela.
Ela olhou para a capa do livro e viu que o que tinha sido dela fora somente a capa. E que suas cores haviam desbotado. E que, para o menino,  ela seria sempre um livro deixado na estante. Que nunca estaria entre os autores mais importantes.
Percebeu que o menino havia lhe ensinado lições valiosas, mas que ele era um estrangeiro nas terras do seu coração e que, como tal, não compreendia as peculiaridades locais por nunca ter fixado residência nele.
Ela guardou o livro, com a capa desbotada, com a história original e com todos os acréscimos. O deixou na estante. À vista, para que nunca se esquecesse, mas sabendo que ele não seria mais lido todos os dias.
A menina não acrescentaria mais nenhuma linha e não tentaria decifrar as suas reticências... elas sempre lhe deram dúvidas sobre o merecimento de ser amada. Nunca mais duvidaria disso.
Aprendeu que talvez o menino nunca tivesse tido idéia de quanto amor ela lhe havia dado, por ser incapaz de enxergar através dos olhos dela. E que ele, embora inspirasse ternura, nunca estaria ao seu lado quando nela reinassem as sombras e que nunca oferecia a ela abraços apertados o suficiente para acolher as suas tristezas.
A menina finalmente colocou um ponto final àquela história. A gramática dos caminhos lhe sussurrava aos ouvidos que todos os livros precisavam de pontos finais.
Ela guardou as suas fantasias e castelos de cartas bem longe daquele livro. E viu que a realidade ainda era bonita e lhe sorria belamente.
O amor, as lembranças, eram só dela. E ambos eram bonitos. Nunca mais ela se esqueceria de ver aquela beleza toda.

Ela sabia que amara sozinha. Mas que sempre se recusaria a amar pouco.