Aquele dia começou com uma
temperatura tão alta que resultava numa dor de cabeça insuportável.
Havia sonhado à noite com um vaso
que continha duas flores vermelhas e despertei ouvindo uma voz dizendo que elas
se abririam e floresceriam.
Fiquei intrigada com o sonho e
meti na cabeça que precisava achar aquelas flores e levá-las para casa.
Mas a dor de cabeça me
infernizava e impedia de ter ânimo.
Resolvi então mostrar ao meu corpo
que era eu a sua comandante, e que meu comando era para que ele ficasse bem.
Saí para dar uma volta, procurar a flor e melhorar a dor.
Fui à feira debaixo do sol
escaldante... procurei, procurei, , mas nada de achar a flor que eu queria. Queriam me convencer a levar outra... mas, eu
precisava de duas, exatamente iguais às do sonho. Porque era preciso ser flor, e era preciso
florescer, disse que voltaria na semana seguinte e que as flores estariam lá.
Segui para o mercado, porque
precisava comprar areia para os gat@s, que são seres que fazem questão de serem
não só independentes, mas também muito limpos. Quem dera se a alma da gente pudesse ser tão limpa quanto
os pelos d@s gat@s...
Ao passar num dos corredores ouvi
um sussurro que pedia para que eu comprasse um pacote de arroz. Era uma mulher
com uma menina linda no colo. O olhar da mãe, no rosto caboclo, era muito triste.
Comprei o que ela pediu, e outros
itens. Certamente, isso não mudaria a vida dela. Sempre detestei o discurso
hipócrita do “cada um deve fazer a sua parte”. Não! Num sistema econômico
desigual, haveria sempre muitas mulheres pedindo ajuda nos mercados para que
outras pessoas pudessem viver em palacetes.
Mas... a fome não liga pra
teorias políticas.
Não é impossível ser feliz
sozinho, já que sozinh@s não estamos nunca. O impossível é ser feliz famint@.
Fomos para a fila. A mulher quase
não elevava os olhos e falava muito baixo. Pensei que por ser o mais nobre de
todos, somente o amor de uma mãe é capaz de suportar certas dores.
A mulher agradeceu. Eu toquei de
leve no seu braço e disse que a vida estava difícil, mas que ela tivesse fé,
porque tudo iria melhorar e que nós, mulheres, éramos muito fortes.
Perguntei se ela era cigana,
porque estava com uma saia colorida. Ela disse que não. Quase disse pra ela que adorava o povo cigano
e que também gostava de roupas coloridas. Calei-me, por perceber que o silêncio
não tem tantas cores, mas às vezes é uma roupa com caimento melhor.
Depois reparei no rosto da menininha. Os olhos dela eram muito profundos. Parecidos com os da menina afegã
que estampou a capa da Nathional Geographic nos idos do século passado. Disse sobre
o quanto ela era linda e ela deu um sorriso bonito como só na infância somos
capazes de ter.
Aqueles olhos verdes enormes já
tinham visto, talvez, muito mais coisas do que os meus.
E fui embora.
Enquanto caminhava, fiz uma prece
pelas duas, senti uma tristeza profunda e a impotência do mundo. Desejei que
elas ficassem bem.
Se tudo na vida é aprendizado, desejei
que o aprendizado de dor delas fosse breve.
Pensei naquela mulher, que estava
tão triste a ponto de não se atrever a levantar a cabeça e a voz.
Lembrei-me de que quando meu pai havia
partido deste plano, há muitos anos atrás, eu abri o armário num dia e só havia
arroz pra cozinhar. Minha mãe ainda não havia recebido seu salário e a pensão
por morte do meu pai demoraria a sair.
Cozinhei o arroz e ofereci para
meu irmão caçula, que questionou o fato de só termos aquilo para comer.
Eu disse que só tínhamos aquilo
pra comer, mas que pra ele ficar feliz, porque tinha muitas crianças que não
tinham nada pra comer, nem mesmo arroz.
Comemos em silêncio.
Na tarde daquele dia, chorei tão
baixo quanto a voz da mulher de hoje no supermercado.
À noite, recebemos alimentos de
um moço a quem sempre detestei, porque ele sempre demonstrara sentimentos que
abomino. Ele era racista, machista, homofóbico... era a concretização de muitas
coisas que me causavam ojeriza.
Ao invés de me sentir grata pelas
doações, eu me senti humilhada e desejei nunca mais precisar de ajuda. Especialmente
dele. E nunca mais precisei.
Pensei que devia ter contado essa
história para a mulher do mercado. Mas simplesmente não havia me lembrado dela na
hora. A memória é um bicho ardiloso.
Entendi então, o olhar daquela
mulher. Ninguém se sente confortável por depender de outras pessoas para suprir
necessidades básicas, como se alimentar. Meu olhar, anos atrás, deve ter sido exatamente
o mesmo. E eu a enxerguei em mim, e ao
meu irmão na filha bonita dela.
Entendi que aquela experiência me
fez mais forte. E pessoas fortes às vezes demoram tempo pra enxergar o tamanho
de sua força.
Hoje, ao sair para comprar flores
e areia, entendi que se melhorar é aprender o valor da gratidão.
Resolvi que, assim que puder, e
em breve, procurarei aquele homem e o agradecerei. Porque, um dia minha família
precisou de alimento e ele teve um gesto de generosidade.
Tod@s estamos caminhando, cada
qual com a sua velocidade, e no seu processo de humanização imperfeita. Uma
mulher forte me disse noutro dia que a gente deveria nascer com 80 anos.
Cada pessoa, dentro de todas as
suas limitações, possui certamente ao menos um lampejo de luz.
Ao diminuir o tamanho do ego, a
gente passa a conseguir enxergar os gestos que, ao menos uma vez na vida tornam
as pessoas belas.
Minha dor de cabeça desapareceu,
sem deixar rastros.
Tenhamos gratidão, para que
nossas flores brotem, se abram e exalem perfumes suaves pelos caminhos. O mundo já anda
espinhento demais.